Crônica feita pelo nosso colega Rodrigo Capelo, para um trabalho da faculdade de jornalismo. Não é humorístico, mas está muito bem escrita e vale o post! Leia tudo se estiver com tempo!
Sabedoria Infantil
Fim de semana. Domingo. O clima não estava quente, nem frio. Não estava úmido, nem seco. O sol estava lá em cima, mas por trás das nuvens. O tempo estava perfeito para uma partida de futebol, para a felicidade dos torcedores de São Paulo e Corinthians. Ambas equipes se enfrentariam nas semifinais do campeonato paulista no estádio tricolor, o Morumbi, às 16h.
Não que as circunstâncias tivessem alguma relevância neste cenário. Não tinham. Assim como uma peça de teatro ou uma estreia no cinema, a partida de futebol era apenas o passatempo dominical de Juvenal. Aos 56 anos, a pele branca e lisa da juventude havia sido substituída por outra ainda mais clara, um pouco enrugada. Com a cabeça levemente inclinada para baixo, o senhor arrumava os óculos no rosto, enquanto ouvia as instruções da esposa, Neuza:
- Não largue as mãos do Pedrinho por um só minuto, você me entendeu?
- É claro, querida. Não tirarei os olhos do garoto – dizia Juvenal, em tom de voz ameno.
Ele decidira levar o filho de 8 anos para conhecer a arena são-paulina. No início, logo quando teve a ideia, recebeu críticas ferrenhas da mulher. Era muito perigoso, dizia a mãe, rígida e superprotetora. Com os dias, as críticas transformaram-se em lamentos e, por fim, construíram a imagem de uma senhora de 47 anos desesperada, preoucupada com a segurança do menino. Ela nada mais podia fazer além de ajoelhar-se perante o criado-mudo do velho quarto e rezar. Pedir para as dezenas de imagens e santinhos que o garoto se divertisse e conseguisse permanecer vivo.
O trunfo, para Juvenal, era exatamente este: a segurança. O novo sistema de identificação havia sido implantado. Todos os torcedores eram obrigados, a partir deste jogo, a cadastrarem-se nas federações, confeccionarem carteirinhas com foto e deixarem as digitais arquivadas. Tal medida foi o suficiente para que Juvenal convencesse a pobre esposa a deixar que levasse Pedrinho ao mais tradicional clássico do futebol paulista.
- Será que a mamãe não vai ficar chateada por não ir com ela ao mercado, pai?
- Não se preocupe, filhão – exclamava Juvenal, empolgadíssimo com o programa inédito – nós vamos nos divertir muito!
O moleque mal conseguia manter-se em pé. Na escola, era um dos menores e mais magros alunos da classe, mas tirava as maiores notas da sala. Altas o suficiente para deixar as meninas com inveja e as professoras boquiabertas.
- Filhão, aquele ali é o Morumbi!
- Nossa – gritava Pedrinho, quase que debatendo-se contra o cinto de segurança por tamanha excitação – é gigante, pai!
- Aqueles de branco e vermelho são são-paulinos – apontava Juvenal – e os de preto e branco são os corinthianos.
- Eles são amigos?
- Não são grandes amigos, filho – tentava eufemizar o pai, com a testa franzida, comum nos momentos de aperto – eles só não conversam muito!
- Mas eles brigam, pai?
- Quase nunca!
Mal terminava de responder as perguntas do filho, enquanto estacionava o carro, Juvenal já podia ouvir os palavrões e xingamentos que vinham das ruas cheias de torcedores alvinegros. Preferiu não dar atenção, trancar o carro e pegar o filho nos braços, rapidamente, para não perder o início do jogo.
Depois de passar pelas catracas eletrônicas, com toda a pompa do novo sistema, ele ainda carregava Pedrinho com um dos braços. Com o outro, levava a mão aos cabelos rasos, mas ainda existentes. O peito estufado de orgulho, vestido pelo manto sagrado da torcida são-paulina, o uniforme da equipe, trazia a sensação de que Juvenal havia voltado a ser jovem. Arrepiava-se com o forte urro que vinha das arquibancadas, a mistura das vozes de milhares de torcedores.
Hino nacional. Jogadores em campo. Aquecimento. Início da partida! Em duas das cadeiras mais altas e afastadas da multidão, pai e filho transbordavam de inquietação. Juvenal, mordendo as pontas dos dedos, não conseguia se manter sentado quando a bola chegava perto da baliza tricolor. Pedrinho, que também pulava a todo momento, não entendia o que estava acontecendo no jogo. Apenas vislumbrava com os olhos arregalados a imensa multidão gritando e o campo, verde e distante.
- Quem é aquele homem de amarelo, pai?
- É o juiz. Ele faz os jogadores seguirem as regras do jogo – explicava o velho homem, com ar de professor.
- Ah tá! Mas por que os jogadores estão rodeando e gritando com ele?
- Eles estão um pouco inconformados, mas logo passa! – dizia Juvenal, um pouco constrangido por testemunhar a falta de disciplina dos atletas – quase! Quase foi gol de falta, filhão!
Não era o primeiro questionamento do garoto. Longe disso. Desde que haviam saído de casa, Pedrinho enchia o pai de perguntas, muitas sem resposta simples. O cabelo do nanico, liso e cortado redondinho, como uma tigela, combinava com a pequena camisa do São Paulo, comprada por Juvenal.
- Pai, por que aquele homem de branco deu um chute no de preto?
- Ora, filho. Ele estava tentando roubar a bola.
- Mas precisava voar daquele jeito? – interrogava o menino, intrigado.
O pai, cada vez mais acuado com as perguntas do filho, não tinha mais forças para tentar explicar as questões. Na verdade, começou a questionar-se sobre as respostas, antes tão óbvias. O novo sistema para torcedores, principal razão pela escolha do passeio, havia sido criado para coibir a violência nas arquibancadas.
Dentro do campo, no entanto, jogadores agrediam-se a cada jogada, a cada minuto, por um objetivo que começava a não fazer sentido para o velho homem. Como ensinaria ao filho a seguir regras, obedecer a superiores, a ser civilizado, quando ali, na diversão do fim de semana, exibia cenas de violência ao garoto?
- Pai – prosseguia Pedrinho – por que aquele homem está levantando um cartão vermelho?
- Ele está expulsando um jogador da partida – dizia o quase arrependido senhor.
- E aquele na beira do campo, por que grita tanto?
- Porque ele quer que os jogadores façam o que ele manda.
- E por que não fazem?
Silêncio. Juvenal, 56 anos, já não sabia o que dizer ao filho de 8 anos. Devia ter o levado filho ao parque, ao cinema, ao teatro, quem sabe ao mercado, com Neuza! O espetáculo saboroso e quente havia se transformado num show de pontapés e deslealdade. Até que, de repente, surpreendeu-se com a nova indagação do pequeno.
- Pai, aquelas catracas na entrada são pra não ter briga, né?
- Sim, filho – assustou-se – por quê?
- Acho que deviam colocar algumas ali onde os jogadores sobem pro gramado!
Sabedoria Infantil
Fim de semana. Domingo. O clima não estava quente, nem frio. Não estava úmido, nem seco. O sol estava lá em cima, mas por trás das nuvens. O tempo estava perfeito para uma partida de futebol, para a felicidade dos torcedores de São Paulo e Corinthians. Ambas equipes se enfrentariam nas semifinais do campeonato paulista no estádio tricolor, o Morumbi, às 16h.
Não que as circunstâncias tivessem alguma relevância neste cenário. Não tinham. Assim como uma peça de teatro ou uma estreia no cinema, a partida de futebol era apenas o passatempo dominical de Juvenal. Aos 56 anos, a pele branca e lisa da juventude havia sido substituída por outra ainda mais clara, um pouco enrugada. Com a cabeça levemente inclinada para baixo, o senhor arrumava os óculos no rosto, enquanto ouvia as instruções da esposa, Neuza:
- Não largue as mãos do Pedrinho por um só minuto, você me entendeu?
- É claro, querida. Não tirarei os olhos do garoto – dizia Juvenal, em tom de voz ameno.
Ele decidira levar o filho de 8 anos para conhecer a arena são-paulina. No início, logo quando teve a ideia, recebeu críticas ferrenhas da mulher. Era muito perigoso, dizia a mãe, rígida e superprotetora. Com os dias, as críticas transformaram-se em lamentos e, por fim, construíram a imagem de uma senhora de 47 anos desesperada, preoucupada com a segurança do menino. Ela nada mais podia fazer além de ajoelhar-se perante o criado-mudo do velho quarto e rezar. Pedir para as dezenas de imagens e santinhos que o garoto se divertisse e conseguisse permanecer vivo.
O trunfo, para Juvenal, era exatamente este: a segurança. O novo sistema de identificação havia sido implantado. Todos os torcedores eram obrigados, a partir deste jogo, a cadastrarem-se nas federações, confeccionarem carteirinhas com foto e deixarem as digitais arquivadas. Tal medida foi o suficiente para que Juvenal convencesse a pobre esposa a deixar que levasse Pedrinho ao mais tradicional clássico do futebol paulista.
- Será que a mamãe não vai ficar chateada por não ir com ela ao mercado, pai?
- Não se preocupe, filhão – exclamava Juvenal, empolgadíssimo com o programa inédito – nós vamos nos divertir muito!
O moleque mal conseguia manter-se em pé. Na escola, era um dos menores e mais magros alunos da classe, mas tirava as maiores notas da sala. Altas o suficiente para deixar as meninas com inveja e as professoras boquiabertas.
- Filhão, aquele ali é o Morumbi!
- Nossa – gritava Pedrinho, quase que debatendo-se contra o cinto de segurança por tamanha excitação – é gigante, pai!
- Aqueles de branco e vermelho são são-paulinos – apontava Juvenal – e os de preto e branco são os corinthianos.
- Eles são amigos?
- Não são grandes amigos, filho – tentava eufemizar o pai, com a testa franzida, comum nos momentos de aperto – eles só não conversam muito!
- Mas eles brigam, pai?
- Quase nunca!
Mal terminava de responder as perguntas do filho, enquanto estacionava o carro, Juvenal já podia ouvir os palavrões e xingamentos que vinham das ruas cheias de torcedores alvinegros. Preferiu não dar atenção, trancar o carro e pegar o filho nos braços, rapidamente, para não perder o início do jogo.
Depois de passar pelas catracas eletrônicas, com toda a pompa do novo sistema, ele ainda carregava Pedrinho com um dos braços. Com o outro, levava a mão aos cabelos rasos, mas ainda existentes. O peito estufado de orgulho, vestido pelo manto sagrado da torcida são-paulina, o uniforme da equipe, trazia a sensação de que Juvenal havia voltado a ser jovem. Arrepiava-se com o forte urro que vinha das arquibancadas, a mistura das vozes de milhares de torcedores.
Hino nacional. Jogadores em campo. Aquecimento. Início da partida! Em duas das cadeiras mais altas e afastadas da multidão, pai e filho transbordavam de inquietação. Juvenal, mordendo as pontas dos dedos, não conseguia se manter sentado quando a bola chegava perto da baliza tricolor. Pedrinho, que também pulava a todo momento, não entendia o que estava acontecendo no jogo. Apenas vislumbrava com os olhos arregalados a imensa multidão gritando e o campo, verde e distante.
- Quem é aquele homem de amarelo, pai?
- É o juiz. Ele faz os jogadores seguirem as regras do jogo – explicava o velho homem, com ar de professor.
- Ah tá! Mas por que os jogadores estão rodeando e gritando com ele?
- Eles estão um pouco inconformados, mas logo passa! – dizia Juvenal, um pouco constrangido por testemunhar a falta de disciplina dos atletas – quase! Quase foi gol de falta, filhão!
Não era o primeiro questionamento do garoto. Longe disso. Desde que haviam saído de casa, Pedrinho enchia o pai de perguntas, muitas sem resposta simples. O cabelo do nanico, liso e cortado redondinho, como uma tigela, combinava com a pequena camisa do São Paulo, comprada por Juvenal.
- Pai, por que aquele homem de branco deu um chute no de preto?
- Ora, filho. Ele estava tentando roubar a bola.
- Mas precisava voar daquele jeito? – interrogava o menino, intrigado.
O pai, cada vez mais acuado com as perguntas do filho, não tinha mais forças para tentar explicar as questões. Na verdade, começou a questionar-se sobre as respostas, antes tão óbvias. O novo sistema para torcedores, principal razão pela escolha do passeio, havia sido criado para coibir a violência nas arquibancadas.
Dentro do campo, no entanto, jogadores agrediam-se a cada jogada, a cada minuto, por um objetivo que começava a não fazer sentido para o velho homem. Como ensinaria ao filho a seguir regras, obedecer a superiores, a ser civilizado, quando ali, na diversão do fim de semana, exibia cenas de violência ao garoto?
- Pai – prosseguia Pedrinho – por que aquele homem está levantando um cartão vermelho?
- Ele está expulsando um jogador da partida – dizia o quase arrependido senhor.
- E aquele na beira do campo, por que grita tanto?
- Porque ele quer que os jogadores façam o que ele manda.
- E por que não fazem?
Silêncio. Juvenal, 56 anos, já não sabia o que dizer ao filho de 8 anos. Devia ter o levado filho ao parque, ao cinema, ao teatro, quem sabe ao mercado, com Neuza! O espetáculo saboroso e quente havia se transformado num show de pontapés e deslealdade. Até que, de repente, surpreendeu-se com a nova indagação do pequeno.
- Pai, aquelas catracas na entrada são pra não ter briga, né?
- Sim, filho – assustou-se – por quê?
- Acho que deviam colocar algumas ali onde os jogadores sobem pro gramado!
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